As chuvas que atingem o Rio Grande do Sul provocaram danos e alterações no tráfego em diversas vias: das estradas federais às vias municipais. A capital Porto Alegre chegou até a criar três corredores humanitários na tentativa de agilizar o abastecimento dos serviços essenciais da cidade, com itens como oxigênio, água, alimentos e equipamentos de emergência e restaurar a mobilidade da cidade, que tem 1,3 milhão de habitantes, de acordo com o Censo 2022.
Destruição nas rodovias
A capital gaúcha não foi o único município a registrar interdições na circulação de vias e rodovias – vale lembrar que mais de 460 cidades foram afetadas. Segundo o mapa interativo, que reúne as informações coletadas pelo Daer (Departamento de Estradas de Rodagem), pelo Comando Rodoviário da Brigada Militar (CRBM), pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF), foram contabilizados pelo menos 382 pontos de bloqueios em rodovias estaduais e federais desde o início das enchentes no estado, dos quais 288 já foram liberados, 57 estão parcialmente bloqueados e 37 totalmente bloqueados, segundo dados coletados na segunda-feira (3). No pior momento, foram 170 pontos de bloqueios de 79 rodovias em 97 municípios nas rodovias estaduais do Rio Grande do Sul.
Os dados são atualizados, em tempo real, pelos órgãos rodoviários em conjunto com o Waze e o Google. Foi criado também outro mapa com rotas alternativas aos motoristas, uma vez que obras como pontes, viadutos, passarelas e túneis também foram afetadas em todo o estado – e nem todos foram recuperados. A maioria dos bloqueios foi causada por água na pista, informa a Selt (Secretaria de Transportes e Logística) estadual, mas houve danos relevantes em todo o estado, como:
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- Desabamento de ponte sobre Rio Forqueta (km 75 da ERS-130), entre Lajeado e Encantado;
- Desmoronamento de pista no km 80 da ERS-129, em Muçum;
- Água na pista e erosões nas rodovias estaduais na Região Metropolitana e parte do Vale do Caí;
- Na região de Bento Gonçalves, mesmo em locais como a ERS-431, onde ainda havia uma ponte colapsada na enchente de setembro, novos danos ocorreram;
- Em Lajeado, balsa levada pela correnteza colidiu com a ponte do Rio Taquari;
- Região de Santa Maria: na via estadual de acesso ao município de Dilermando de Aguiar, a ponte teve dano estrutural irreversível, com ruptura de um dos pilares;
- Na região do Vale do Taquari, ponte colapsou entre Travesseiro e Marques de Souza – via municipal que é a única ligação do município de Travesseiro com a BR-386;
- Na região de Cachoeira do Sul, na ERS-403, a água passou sobre a ponte do Rio Botucaraí e provocou a interdição do trecho situado no km 39;
- Entre Agudo e Dona Francisca, na ERS-348, quilômetros de asfalto foram destruídos pela força das águas.
Quanto vai custar reparação?
A estimativa de custo para reconstrução de 8.434 km de rodovias pavimentadas e não pavimentadas que foram afetadas de alguma forma no estado parte de R$ 3 bilhões a R$ 9,9 bilhões, estimou o governo gaúcho ao anunciar, nesta segunda-feira (3), plano para reconstruir e recuperar rodovias e pontes prejudicadas pelas chuvas. O custo mínimo considera obras de correção e liberação dos pontos atingidos e o valor máximo leva em conta as adaptações para as mudanças climáticas.
O governo do Rio Grande do Sul informou ainda que, para agilizar o atendimento das cidades afetadas, foram definidas modalidades de contratação conforme a necessidade de cada local. Nos casos de grande impacto, será utilizada a contratação com dispensa de licitação, em regime integrado, permitindo que as fases de instrução do processo sejam realizadas em até 15 dias.
De acordo com o governo, 30 rodovias foram priorizadas para receber ações de recuperação e reconstrução, abrangendo 36 municípios. Além disso, informou ainda que foram publicados editais de licitação para reconstrução de oito pontes em sete rodovias estaduais, com valor total estimado em R$ 76,4 milhões.
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Vale lembrar que um relatório preliminar do Daer, vinculado à Secretaria de Transportes e Logística (Selt) estadual, estimou os valores necessários somente para a recuperação dos casos listados acima em quase R$ 230 milhões.
Em 5 de maio, o governo estadual anunciou a abertura de crédito suplementar, no valor de R$ 117,7 milhões no orçamento, “destinado à recuperação imediata da infraestrutura rodoviária estadual danificada pelas chuvas”. A medida está estabelecida no Decreto 57.599/2024, publicado em edição extra do Diário Oficial do Estado (DOE), e destina pelo menos:
- R$ 92 milhões para restauração e reparos gerais nas estradas estaduais;
- R$ 13 milhões para reconstrução de ligações regionais;
- R$ 3 milhões para a reconstrução das ERS-118 e ERS-734.
Dois dias depois, em 7 de maio, o governador Eduardo Leite (PSDB) anunciou a destinação de R$ 200 milhões em recursos emergenciais para o enfrentamento da crise atual. “Todos os municípios que estão decretando situação de emergência vão receber os valores “, disse. Desse montante, R$ 40 milhões foram direcionados “para recuperar e desobstruir estradas”.
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Procurado pelo InfoMoney, o governo federal, por meio do Ministério dos Transportes, informou em nota que “não há como apontar ainda, justamente devido às variações do clima, um número fechado de quantas intervenções ainda serão executadas na malha rodoviária federal gaúcha”. O texto diz ainda que há “obras que carecem de estudos e projetos para sua execução, os quais também se encontram em andamento”.
Contudo, até o momento, o Ministério dos Transportes estima investir R$ 1,2 bilhão na recuperação das rodovias federais afetadas pelas chuvas no Rio Grande do Sul. Segundo o Ministério, “o valor encontra-se integralmente disponível e depende exclusivamente da realização dos serviços para que haja pagamentos”. Além disso, informa ainda que “os pagamentos dessas obras e serviços obedecem a um processo de medição, que é realizado mensalmente, conforme legislação vigente”. Ainda não foram divulgadas as primeiras medições.
Desafios vão além dos custos
Segundo especialistas consultados pela reportagem, os desafios da reconstrução de rodovias que ligam os municípios e o restabelecimento da mobilidade nas próprias cidades – como a capital Porto Alegre – vão além dos custos financeiros.
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Segundo o professor do Departamento de Engenharia de Produção e Transportes da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Luiz Senna, é essencial esperar a água baixar para poder avaliar todo o estrago.
Ele explica que isso contempla desde a avaliação de danos em pontes até deslizamento de encostas, porque dependendo da extensão dos danos, rodovias precisarão até ter seu traçado redefinido, diz. Isso sem contar os efeitos que podem aparecer com o tempo, como a estrutura de rodovias que podem ter danos mais profundos em sua estrutura devido ao tempo em que ficaram submersas e que só serão notados com o retorno de caminhões mais pesados circulando novamente, por exemplo. “O que se sabe é que são danos muito sérios. No âmbito urbano é a mesma coisa: ruas e avenidas estão muito prejudicadas. Porto Alegre mesmo tem vias ainda submersas”, conta.
A estimativa do professor é que essas avaliações podem ser concluídas em até um mês, a partir do momento de baixa das águas – desde que não ocorra “repique”, ou seja, retorno das chuvas que impeçam o escoamento. “Pontes são sempre pontos mais sensíveis de rodovias e a manutenção é algo fundamental. O Brasil não está acostumado a lidar com manutenção, governantes estão mais preocupados com a obra e a inauguração. E isso não é o fim, é o início da ‘vida’. O grande desafio é ter ativos públicos com condições em toda a vida útil deles, que chega a 40 ou 50 anos”, continua Senna.
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No caso de Porto Alegre, ele conta que nem toda cidade está diretamente afetada, já que a parte mais alta não foi atingida diretamente. “Por outro lado, a cidade não tem sistema de transporte público que atenda a todos hoje. Existe uma dificuldade operacional do sistema de transporte público, que basicamente é feito por ônibus. A rodoviária atende hoje transporte intermunicipal, interestadual e internacional, mas está prejudicada, assim como terminais de transporte metropolitano e o terminal de transporte urbano central”, comenta Senna.
Na avaliação do professor, as estruturas de mobilidade urbana conseguirão ser recuperadas mais rapidamente podendo voltar a funcionar “cinco ou seis dias depois da água ir embora”. Por outro lado, há estruturas que levarão meses para a recuperação e funcionamento, como o aeroporto – cuja estimativa é a de voltar a operar só em dezembro – e pontes em rodovias que precisarão ser reconstruídas do zero. E isso porque, conta, “o Rio Grande do Sul só tem 12% de rodovias pavimentadas. E estamos abaixo da média nacional, que é 13%. Na verdade, o estado tem de 7% a 8% de rodovias em ótimas condições. É padrão do país. A infraestrutura deixa a desejar e esses parâmetros mostram que metade das rodovias brasileiras tem más condições”, observa o professor da UFRGS.
Concessões
De acordo com advogados especialistas em Infraestrutura consultados pelo InfoMoney, outro grande desafio na reconstrução será em relação às concessões. Para Luis Eduardo Menezes Serra Netto, sócio do escritório Duarte Garcia, Serra Netto e Terra, tanto as rodovias operadas pelo Poder Público (via DER, DNIT etc) quanto aquelas cuja operação e manutenção foram transferidas à iniciativa privada por intermédio de contratos de concessão sofreram os efeitos das enchentes da mesma maneira. “Mas é muito fácil verificar que as formas de recomposição serão bastante diferentes”, diz.
Netto explica que as rodovias operadas diretamente pelo Estado do Rio Grande do Sul, municípios e União Federal receberão financiamento direto, com contratos de construção e recuperação geralmente precedidos por procedimentos licitatórios complexos e demorados. No entanto, em situações de calamidade pública, pode haver exceções permitindo contratações diretas sem licitação.
Para as estradas concessionadas, a reconstrução segue regras contratuais e legais. Normalmente, os contratos não preveem a destruição maciça da estrutura, focando em manutenção preventiva ou corretiva e possíveis obras significativas. Esses eventos geralmente são cobertos por seguro. Mesmo sem a obrigatoriedade de seguro, há a obrigação contratual de recomposição rápida para manter o fluxo e a receita do pedágio.
O desequilíbrio econômico-financeiro resultante dos custos imprevistos de recomposição deve ser resolvido conforme mecanismos contratuais e legais. “Podem envolver aportes de recursos, extensão de prazo contratual e modificação de marcos contratuais de investimentos”, ressalta o advogado.
O mesmo conceito se aplica às concessões de ônibus e terminais rodoviários, explica Virginia Mesquita, sócia para a área de Infraestrutura e Financiamento de Projetos do Demarest Advogados. “Passam a ter demanda zero de um dia para o outro e ainda tem custos fixos, porque não vão demitir funcionários do dia para a noite, precisam manter o mínimo de estrutura física e organizacional. Para essas concessões, algumas empresas podem querer devolver e outras vão precisar de reequilíbrio cautelar, que já foi ‘testado’ na pandemia”, comenta. O equilíbrio cautelar é quando o poder concedente concede, em caráter cautelar, uma antecipação de parcela do reequilíbrio pleiteado, enquanto avalia o montante exato a ser compensado para o reequilíbrio econômico-financeiro.
Segundo a advogada, pode ser útil nesse caso para as empresas honrarem suas obrigações contratuais até o reestabelecimento do serviço, que pode demorar. Contudo, ela ressalta que nem isso nem a dispensa de licitações em obras emergenciais devem ser “carta branca” para gastos. “Algumas pontes e estruturas vão ser de competência do município, estado e união. Cada ente, dentro da sua competência, vai priorizar do que vem por emergência. E o resto terá que ser executado de forma mais planejada. Importante também haver coordenação entre esses entes”, acrescenta Virginia.